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O woke faz estrago na igrejinha do ateísmo

Richard Dawkins, zoólogo britânico e o ateu mais famoso do mundo, pediu no último sábado (28) desligamento de sua posição honorária na Freedom From Religion Foundation (FFRF, algo como “Fundação Livre de Religião”), uma organização secularista fundada em 1976 com renda bruta anual de US$ 13 milhões. Steven Pinker, psicólogo de Harvard tão famoso quanto o cientista britânico, fez o mesmo.

As abdicações foram um protesto pela censura de um texto do biólogo americano Jerry Coyne, até então também membro honorário da FFRF. O texto, publicado no principal site da organização, era uma defesa das bases biológicas do gênero e uma resposta a outro artigo, assinado pela autora “não-binária” Kat Grant.

Sob o título “O que é uma mulher?”, Grant argumentou que “toda tentativa de definir o que é uma mulher em termos biológicos é inadequada” e que há regiões do mundo com “três sexos e cinco gêneros”. Coyne, como bom biólogo, discordou.

Em seu texto, de título “Biologia não é intolerância”, Coyne criticou Grant por ter definido “mulher” de forma circular, “uma mulher é quem ela disser que é”. Para ele, foi “uma notável redefinição de um termo com uma longa história biológica que só pode ser vista como uma tentativa de forçar uma ideologia sobre a natureza”.

Coyne acrescentou que definições subjetivistas, em que há uma tentativa de aceitar que uma pessoa é o que ela alega que é, levam a vários problemas. “Você nem é sempre gordo se apenas se sente gordo (é o problema da anorexia), nem um cavalo se sente que é um cavalo (um grupo de pessoas que chamam a si mesmas de ‘therians’ se identificam psicologicamente como animais). (…) Sentimentos não criam a realidade. Na biologia, o sexo é definido pelo tamanho e a mobilidade das células reprodutivas (‘gametas’)”.

Dawkins, no e-mail à FFRF em que renunciou de sua posição honorária, usou de seu inconfundível estilo ácido. “Vocês cederam aos gritos histéricos vindo dos setores previsíveis e censuraram retroativamente aquela refutação excelente. Removê-la sumariamente sem nem mesmo informar ao autor das suas intenções foi um ato de descortesia lamentável a um membro de sua Diretoria Honorária. Uma diretoria que agora deixo com pesar.”

Pinker, por sua vez, disse em sua carta de desligamento que “a razão é óbvia: a sua decisão, anunciada ontem, de censurar um artigo do membro da diretoria [honorária] Jerry Coyne, e de difamá-lo como um opositor dos direitos LGBTQIA+”. “Com esta ação, a Fundação não é mais uma defensora do direito de se livrar da religião, mas uma organização que impõe uma nova religião, cheia de dogma, blasfêmia e hereges. Ela virou as costas para a razão”.

Você pode ler o texto de Grant aqui e a resposta censurada de Coyne em arquivo aqui.

Ironia: o site da FFRF de onde foi censurado o artigo de Coyne se chama Freethought Now! (“Livre Pensamento Agora!”). Alguns pensamentos são mais livres que outros.

Quando South Park caçoou dos ateus

A maravilhosa comédia animada South Park zoou os ateus há quase duas décadas com um episódio em duas partes de título “Vai, Deus, vai!”, em que aparece Dawkins, interpretado com um péssimo sotaque britânico — imitar o jeito de falar dos súditos da rainha (agora rei) nunca foi o forte dos criadores Matt Stone e Trey Parker.

Para resumir a história, o sempre intolerante Eric Cartman congela a si mesmo por séculos e acorda numa sociedade dominada por ateus, parte dos quais são lontras falantes (não pergunte). Grupos de ateus estão em guerra, contudo, e o motivo da guerra só é revelado no final: eles brigaram a respeito de que nome deveria ter sua associação de ateus. E isso foi baseado em uma briga real nos EUA.

O motivo da ridicularização era que os ateus estavam fazendo muito sucesso com bestsellers como Deus, um delírio (Cia das Letras, 2007) e O fim da fé (Tinta da China, 2007), além de estrondosos debates públicos com mestres da retórica como o saudoso jornalista britânico Christopher Hitchens.

O movimento, cujo ápice foi entre 2006 e 2011 (quando Hitchens morreu), ficou conhecido como “neoateísmo” e, se teve algum sucesso além de irritar religiosos, foi colocar os ateus definitivamente no mapa como uma importante comunidade de crença nas democracias ocidentais (embora resistam à caracterização do ateísmo como uma crença, o que não faz muito sentido filosófico).

Mas o South Park errou na previsão do que levaria os ateus a destruírem suas associações: não foram disputas tolas sobre quais nomes devem ter, foi a moda ideológica que sucedeu o neoateísmo: o woke (identitarismo).

“Elevatorgate”: o embrião woke do racha entre os ateus

Um prenúncio do que o woke reservava para os ateus aconteceu precisamente em 2011: no contexto de uma conferência, uma influenciadora reclamou que um homem tímido a chamou para um “café” no quarto dele às quatro da manhã dentro de um elevador. Ela disse que era uma atitude reprovável, em um vídeo. Richard Dawkins ironizou a suposta hipersensibilidade da influenciadora em um comentário sarcástico em que recomendava a uma muçulmana imaginária que se acalmasse, afinal a influenciadora ateia americana tinha problemas muito maiores como homens tentando flertar com ela.

O caso, que ganhou o nome “Elevatorgate”, virou um teste de Rorschach para os ateus: os mais inclinados ao progressismo não viam nada de irrazoável no pedido da influenciadora, os mais libertários ou conservadores viam uma tentativa irrazoável de reforma de um comportamento que nada tinha de errado. Dawkins, simpático à esquerda, acabou pedindo desculpas.

No ano seguinte, uma rede de blogs ateus lançou o “Ateísmo+” — o “+” significava adesão à pautas da suposta “justiça social”, e mais especificamente ao identitarismo.

Avançando uma década, agora no auge do identitarismo, Dawkins começou a criticar as ideias radicais e antibiologia que circulam no identitarismo. A Associação Humanista Americana (AHA), já capturada pelo woke, removeu dele o prêmio de “humanista do ano” que Dawkins recebera em 1996. “Sua declaração mais recente insinua que as identidades de indivíduos transgêneros são fraudulentas”, justificou a AHA. O leitor pode conferir o que Dawkins diz que irrita tanto os identitários neste texto que eu traduzi.

Sobre o caso da FFRF, passo a conclusão para um seguidor meu no X, que usa o nome John Henry: “Sou católico, mas é triste ver os ateus perdendo a característica que eu mais admirava neles: a racionalidade e o livre pensamento”. Pois é. No meio do caminho tinha um woke.

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Eli Vieira

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