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O que aprendi lendo toda notícia de censura judicial no Brasil desde 2019

Em 20 páginas, citando 118 notícias, compilei todo caso de censura judicial no Brasil noticiado entre 2019 e fevereiro de 2025 — com exceção da censura aplicada em alvos parlamentares ou como parte dos processos contra os réus do 8 de Janeiro.

Essa janela mais restrita de dados foi importante para buscar maior objetividade, assim como fez o psicólogo Steven Pinker no livro “Os anjos bons da nossa natureza” (Cia das Letras, 2017), no qual excluiu os mortos nas duas guerras mundiais para poder analisar melhor a taxa base da violência.

Não publicarei a compilação completa aqui, pois ela pertence a quem a encomendou, mas fiquei livre para refletir a respeito do que observei. Aqui vão as principais conclusões.

Bloqueio do X foi ensaiado antes contra o Telegram

Como meus dados têm origem na imprensa, depois de ler todos os títulos de matérias que mencionavam “censura” nos seis anos, precisei voltar a procurar por casos específicos que sei que a imprensa resistiu a chamar de censura, por causa de seu viés político.

Um desses casos foi a suspensão do Telegram em 17 de março de 2022, um aplicativo que é ao mesmo tempo uma plataforma de comunicação privada e uma rede social. Foi ali que Alexandre de Moraes começou a ensaiar seu abuso de poder, posteriormente utilizado contra o X (Twitter), banido do país por 40 dias em 30 de agosto de 2024.

Na época, o Telegram ficou suspenso por três dias. Por quê? Moraes, que abraçou a doutrina progressista de criminalizar “desinformação”, exigia a remoção de links de um canal de Bolsonaro e que o Telegram adotasse medidas contra “fake news”, incluindo o monitoramento diário e manual dos 100 canais mais populares no Brasil. Outra exigência que se repetiu no caso do X: obrigatoriedade de indicar representante no Brasil. Imagine se houvesse coerência de exigir isso de todo site que opera no país e oferece serviços pagos: seria uma ordem impossível de obedecer e que censuraria a maior parte da Internet.

Um ano depois, em 15 de março de 2023, Moraes ameaçou suspender novamente o Telegram. Dessa vez, foi porque o aplicativo distribuiu uma mensagem crítica ao PL 2630/2020 (“PL das Fake News” ou “PL da Censura”), para o qual Moraes até havia sugerido artigos. Então o lobby que Moraes fez a favor do projeto de lei vinha com proibição contra o lobby contrário. É um juiz, ou um lobista parlamentar?

O mapa a seguir foi produzido pela Surfshark, empresa de rede privada virtual (VPN), em abril de 2024. O Brasil está pintado de vermelho junto com as ditaduras e regimes instáveis do mundo que censuram aplicativos de mensagens e redes sociais: Venezuela, China, Rússia, Coreia do Norte e regimes despóticos da África. Eis a imagem do Brasil construída pelo consórcio da censura e seu paladino principal, Alexandre de Moraes, antes mesmo do banimento do X.

A censura de rotina das cortes menores

Depois da Ditadura Militar, formou-se um consenso na classe tagarela brasileira (intelectuais, jornalistas e artistas) que a censura particularmente inadmissível é a censura prévia. Esta, sim, teria ficado no passado. (Não entendo por que a “pósvia” seria admissível.) Alguns acham que a censura prévia só voltou quando o Tribunal Superior Eleitoral proibiu a produtora Brasil Paralelo de veicular seu documentário sobre a facada em Bolsonaro durante as eleições de 2022 — os ministros que votaram a favor da censura, como Cármen Lúcia, sequer conheciam o conteúdo do filme.

Mas não é verdade que só voltou ali: a censura prévia é um acontecimento rotineiro no nosso país. Em 15 de junho de 2020, o juiz Daniel da Silva Luz, da comarca de Espumoso (RS), fez censura prévia contra uma reportagem do canal gaúcho RBS TV, que tratava de denúncia de apropriação indevida do auxílio emergencial da pandemia. Em 21 de agosto de 2021, a juíza Tatiana de Lorenzo, da 18ª Vara Cível da comarca de Porto Alegre, impôs censura prévia a outra reportagem da RBS TV sobre a delação premiada de um empresário envolvido em escândalo de corrupção na prefeitura de Bagé. Ainda em 2021, Twitter e Google acusaram Moraes de praticar censura prévia ao banir perfis dos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais.

Alguns juízes de cortes menores parecem ter uma preferência por mandar remover reportagens após publicadas. O juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília, mandou remover uma reportagem da revista Crusoé em 12 de agosto de 2020. O texto continha uma análise crítica da suposta falta de interesse da deputada Bia Kicis (PL-DF) e outros da base de apoio ao governo Bolsonaro por um projeto de prisão de condenados em segunda instância. A deputada negou, mas não é isso o que importa aqui: o que importa é que o juiz achou a censura uma boa solução para o caso.

Havia se passado pouco mais de um ano desde a censura à Crusoé, aplicada por Moraes, contra a reportagem “O amigo do amigo de meu pai” — houve uma comoção e Moraes recuou, mas pelo visto isso não intimidou o juiz Hilmar. Em 20 de junho de 2023, ele mandou a revista Piauí remover um trecho de reportagem sobre suposto nepotismo dentro de uma agência criada pelo governo para substituir o programa Mais Médicos.

Em agosto, Hilmar Raposo Filho aplicou uma terceira censura (na minha busca), desta vez a uma reportagem do site O Bastidor, e ao seu editor Diego Escosteguy, que tratava de supostas fraudes no Banco Master. Quase sempre, a fundamentação alegada pelo juiz é a proteção à imagem de alguma pessoa física ou jurídica.

E então temos uma profusão de decisões judiciais censórias nos rincões do país: um repórter de YouTube focado em direito do consumidor, Ben Mendes, teve sua reportagem em vídeo censurada em julho de 2023 pelo desembargador Cavalcante Motta, da 10ª Câmara Cível de Betim, em nome da imagem da clínica de estética criticada pela reportagem. Uma reportagem sobre o assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete Pacífico, do Intercept Brasil, foi censurada pelo juiz George Alves de Assis, da 7ª Vara Cível da comarca de Salvador, em setembro do mesmo ano. No mesmo mês, o juiz Adhemar de Paula Leite Ferreira Néto, da 3ª Entrância do Tribunal de Justiça da Paraíba, até desobedeceu ao STF ao aplicar uma segunda censura a um documentário crítico à Operação Lava Jato naquele estado.

Quanto mais os desembargadores do país desembargam, mais a voz dos brasileiros fica embargada.

Celebridades ideologicamente alinhadas com o progressismo parecem ter tratamento especial. Em setembro de 2024, a juíza Admara Falante Schneider, da 40ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, atendeu ao pedido de Chico Buarque e Gilberto Gil de censurar a paródia da música “Cálice” feita pelo jornalista Tiago Pavinatto. Isso apesar de a lei de direitos autorais (9.610/1998) permitir explicitamente a paródia em seu artigo 47. Não satisfeita, Schneider aplicou uma multa de R$ 40 mil na Meta por desobedecer à ordem de censura no Instagram e no Facebook.

A juíza do Rio terminou no mês passado um mandato de dois anos também como juíza eleitoral na 24ª Zona Eleitoral da capital (Senador Camará). Como veremos, a Justiça eleitoral é a maior fonte de censura no país.

Uma jabuticaba chamada TSE

Não há nada como o sistema do Tribunal Superior Eleitoral e suas 27 cortes eleitorais menores em outros países. Lá fora, geralmente há entidades não-judiciais para administrar as eleições, com poderes mais limitados. Por exemplo, nos EUA há a Comissão Federal de Eleições (FEC), uma agência regulatória independente que aplica leis de financiamento de campanha. Disputas litigiosas são resolvidas na Justiça comum.

A Justiça eleitoral registra eleitores e candidatos, monitora financiamento de campanhas e o conteúdo de sua propaganda, conta os votos, investiga crimes eleitorais, anuncia os resultados e pode até remover políticos de cargos eletivos depois de tomarem posse.

Não é demais repetir: a Justiça eleitoral brasileira é algo singular no mundo, uma jabuticaba, sem paralelos em estrutura e escopo de seu poder em outros países. E este poder é usado com esmero para calar a boca dos cidadãos. Ora, se uma democracia ainda incipiente como o Brasil tem uma forma completamente idiossincrática de aplicar poder sobre os cidadãos, as chances de haver abuso desses poderes são grandes. Especialmente quando esses poderes são entregues nas mãos de um carreirista político ambicioso como Alexandre de Moraes.

Cidadãos comuns têm seu direito de expressão cerceado pela Justiça eleitoral e leis que restringem a campanha a poucas semanas antes da abertura das seções eleitorais. Isso só pode ser chamado de censura.

Acontece com todos os lados da política. No mesmo mês, setembro de 2022, dois outdoors foram censurados por juízes eleitorais em Comodoro (MT) e Campos dos Goytacazes (RJ), um contra Bolsonaro, outro contra Lula. Examine o conteúdo das peças: são meras opiniões de eleitores a favor ou contra algum candidato, opiniões que eles deveriam ser livres para expressar em qualquer contexto, pois são eles os soberanos em uma democracia, ao menos em tese.

Não é papel da Justiça decidir o que é verdade ou mentira a respeito de candidatos: é papel do próprio eleitor. Se o eleitor é ruim nisso, a democracia paga o preço; se ele é bom, a democracia é saudável. Não há atalhos, especialmente autoritários, para esse dilema.

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Eli Vieira

Eli Vieira

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