Por Leonardo Corrêa*
O editorial do Estadão de hoje (16/02/2025), intitulado “Almoço grátis” na Justiça do Trabalho, expõe um paradoxo curioso: os tribunais reclamam do excesso de processos, mas tomam decisões que incentivam ainda mais a litigância. A reforma trabalhista de 2017 reduziu significativamente o número de ações, desestimulando aventuras jurídicas ao exigir contrapartidas para quem entrasse na Justiça sem fundamento. Porém, o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior do Trabalho, com sucessivas interpretações “criativas”, afrouxaram essas regras, e o resultado está aí: mais de 2 milhões de ações trabalhistas em 2024, um aumento de 14,1% em relação ao ano anterior. O custo do processo, para muitos trabalhadores, voltou a ser zero. E quem paga a conta?
A situação lembra alguém que reclama da balança, mas vive assaltando a geladeira de madrugada. O Judiciário diz estar sobrecarregado, mas abre as portas para a proliferação de litígios. A decisão do STF de 2021, que isentou os trabalhadores beneficiários da justiça gratuita do pagamento de honorários de sucumbência, já havia sido um passo nesse sentido. Mas o golpe fatal veio do TST, que agora exige que juízes concedam automaticamente a justiça gratuita mediante mera declaração de pobreza, jogando sobre os empregadores o ônus de provar que o litigante pode pagar as custas do processo. Ou seja, um dos pilares da reforma de 2017—o desestímulo a ações temerárias—foi desmoronado.
Isso não só cria um incentivo perverso para ações infundadas, mas gera insegurança jurídica e onera empresas que já enfrentam um ambiente hostil à contratação formal. No Brasil, empreender já exige um espírito de sobrevivente, mas disputar uma ação trabalhista virou uma roleta russa: a cada nova decisão judicial, as regras do jogo mudam. Como confiar em um ordenamento jurídico em que um acordo assinado entre empregador e empregado pode ser revisto anos depois com base em critérios subjetivos?
O ativismo judicial é um vício que se disfarça de virtude. Juízes e ministros podem acreditar que estão promovendo justiça social ao flexibilizar regras criadas para racionalizar o sistema. No entanto, ao subverter a legislação aprovada pelo Congresso, transformam a Justiça do Trabalho em um cassino sem fichas: alguém sempre sai ganhando sem precisar pagar para jogar. Isso sobrecarrega os próprios tribunais e prejudica quem busca a Justiça por razões legítimas, pois os processos se acumulam e os prazos se alongam.
O resultado é previsível: menos segurança jurídica, mais litigância e um mercado de trabalho engessado, onde cada nova contratação se torna um risco calculado. O que deveria ser uma estrutura para resolver conflitos se transforma em um mecanismo que os incentiva. E o Judiciário, que tanto se queixa da sobrecarga, segue firmemente colocando mais pedras no próprio bolso.
Se há um princípio inescapável na Análise Econômica do Direito, é que os incentivos importam. Quando se reduz o custo de uma ação judicial para o demandante, a quantidade de ações aumenta. Não há surpresa nisso; trata-se da aplicação direta do conceito de custo marginal zero. Quando um sistema judiciário facilita a litigância sem custos, ele gera um comportamento oportunista que, longe de proteger direitos legítimos, apenas encarece o ambiente econômico e torna as relações contratuais mais instáveis.
Dado que a natureza dos seres humanos e o mundo em que vivem é tal que os incentivos moldam comportamentos, se queremos um mercado de trabalho mais dinâmico e uma Justiça menos sobrecarregada, então devemos reforçar os custos para litigâncias temerárias. Não se trata de impedir o acesso à Justiça, mas de garantir que ele não seja utilizado de forma predatória.
A Lexum se orienta por três princípios fundamentais que deveriam ser a espinha dorsal de qualquer reforma institucional séria:
1. O Estado existe para preservar a liberdade. Isso inclui a liberdade de contratar sem o temor de que cada vínculo de trabalho se transforme em um litígio sem risco para o reclamante.
2. A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal. O Judiciário não pode reescrever as leis conforme sua conveniência, sob pena de desestabilizar o próprio ordenamento jurídico.
3. A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. O ativismo destrói a estrutura para tratar da conjuntura, e sua consequência é um Judiciário que alimenta a crise que diz combater.
Mas há ainda um fator que não pode ser ignorado: o Judiciário, como qualquer burocracia, busca expandir seu orçamento e sua influência. Orçamentos maiores significam mais poder, mais cargos, mais estrutura e, consequentemente, maior relevância dentro da máquina estatal. Sob essa ótica, o maior interessado na “sobrecarga” dos tribunais pode ser o próprio Judiciário. Mais processos justificam mais verbas, novos tribunais, aumento de remuneração e, claro, maior capacidade de interferir na vida social e econômica do país.
Reclamar da carga de trabalho pode ser apenas o pretexto perfeito para reivindicar mais orçamento. A lógica burocrática nunca falha: primeiro, criam-se os incentivos errados, depois, usam-se as consequências desses incentivos como justificativa para aumentar o tamanho da máquina. No fim, o que deveria ser um sistema de solução de conflitos se torna um motor de perpetuação da própria crise. Afinal, tribunais lotados garantem que ninguém questione a necessidade de um Judiciário cada vez maior.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, um dos Fundadores e Presidente da Lexum