Se tem algo que nunca falta nas conferências do clima, é hipocrisia. Agora, o presidente da COP-30, André Corrêa do Lago, nos vem com essa (divulgada em matéria do Estadão): a China pode substituir os EUA no debate climático porque “avança mais rápido que se imagina”. A China? Sério? A mesma que foi responsável por dois terços das novas usinas de carvão inauguradas em 2023? A mesma que continua aprovando novas minas de carvão sem o menor pudor enquanto posa de campeã das energias renováveis? O mundo inteiro fala em transição energética, mas a China faz o que é conveniente para ela: empurra um discurso ambientalista para a plateia global enquanto mantém sua economia abastecida com energia barata e abundante. E, pasme, ainda ganha aplausos por isso.
Os números não deixam dúvida: a China é o maior emissor mundial de gases de efeito estufa, respondendo por 27% das emissões globais de CO₂. Em 2021, o país despejou 11,47 bilhões de toneladas de CO₂ na atmosfera, mais do que o dobro dos EUA, que, no mesmo ano, emitiram 5,01 bilhões de toneladas – o que representa apenas 14% das emissões globais. Mas, por algum motivo, a COP agora finge que faz sentido tratar a China como líder climática, como se o maior poluidor do planeta fosse agora o herói da causa ambiental.
E os EUA? Bem, os EUA decidiram pular fora desse circo de hipocrisia. Como o próprio André Corrêa do Lago reconhece na entrevista ao Estadão, a ausência dos americanos é um baque considerável para as negociações climáticas, já que os EUA são um dos poucos países que de fato têm dinheiro para bancar medidas de transição energética. Não é à toa que, no Acordo de Paris, o então presidente Obama teve um papel fundamental na articulação das metas, enquanto o Senado americano sempre mostrou resistência. Agora, sem os EUA na jogada, resta a fantasia de que China e outros países em desenvolvimento vão ocupar esse espaço.
E, convenhamos, quem pode acreditar nisso? Como bem observou o historiador Niall Ferguson, em episódio de Uncommon Knowledge, a questão climática se encaixa perfeitamente na lógica da “Guerra Fria II”. Ferguson argumenta que já estamos em uma nova Guerra Fria, mais perigosa que a primeira, devido ao poderio econômico e tecnológico da China. Nesse contexto, a questão ambiental vira mais uma peça de um jogo geopolítico maior. A China age em duas frentes: enquanto busca hegemonia global, projeta uma imagem de liderança ambiental para o público externo. No entanto, essa fachada se desfaz quando observamos a realidade: novas usinas de carvão, dependência de combustíveis fósseis e um modelo de desenvolvimento que coloca o crescimento econômico acima de qualquer compromisso ambiental.
E, no caso do Brasil, a situação é ainda mais delicada. Assim como Ferguson aponta a interdependência econômica entre EUA e China como um obstáculo para pressionar Pequim, o Brasil enfrenta uma dependência ainda maior. A China é nosso maior parceiro comercial há mais de uma década, absorvendo boa parte das nossas exportações de soja, minério de ferro, carne e petróleo. Como ela é o maior poluidor global, qual é o nosso poder de convencê-los a sujarem menos o planeta? Nenhum. A necessidade de manter as relações comerciais nos coloca em posição de subordinação, enquanto seguimos fingindo que temos alguma influência.
E para coroar essa ópera de inconsistências, o Brasil, que sediará a COP-30 em Belém, ainda precisa lidar com suas próprias contradições. Como Corrêa do Lago admite, um dos principais desafios será convencer o mundo de que um país que defende novas frentes de exploração de petróleo na Margem Equatorial realmente tem autoridade para cobrar compromissos climáticos dos outros. Mas, claro, a saída já está pronta: “Todos os países enfrentam alguma forma de contradição no combate à mudança do clima”. Ou seja, quando convém, hipocrisia pode.
O resultado disso? Pequim segue jogando seu próprio jogo, o resto do mundo bate palma, e os americanos – que já entenderam que é tudo um circo – saíram de cena.