Por dois dias, o Fórum da Liberdade de Porto Alegre, com recorde de mais de 6.600 participantes, dominou a consciência da direita brasileira, especialmente aquela inclinada ao liberalismo.
Uma convidada internacional, Fleur Hassan-Nahoum, ex-vice-prefeita de Jerusalém, resumiu uma das ideias mais recorrentes do evento: “Se você quer que boas ideias morram, você as leva para o governo. Se quer que vicejem, você as leva para o mundo dos negócios e da sociedade civil”. Ela também encarnou o tema da edição deste ano: “coragem para escolher”.
Ontem, o último dia, um dos pontos altos foi quando, no meio da tarde, subiram ao palco os governadores Romeu Zema (Novo-MG) e Eduardo Leite (PSDB-RS). Imediatamente, Leite foi vaiado. Zema, ovacionado.
As vaias, na minha estimativa de ouvido, vieram de no máximo um quarto da plateia. Uma porção importante, mas não majoritária dos presentes.
Não caracterizaria quem vaiou como incivilizado, pois todos respeitaram o pedido do governador gaúcho de fazer um momento de silêncio pelas sete vidas de estudantes da Universidade Federal de Santa Maria, perdidas em um acidente de trânsito no mesmo dia.
O tratamento diferente dispensado a cada um dos governadores foi intrigante, já que ambos têm entregado resultados que deveriam agradar especialmente ao grupo político dominante no evento. Pode ser um simples caso de cobrança e proximidade de eleitores locais diante de seu próprio governador. Mas, conversando com os presentes, foram-me apresentados ao menos quatro outros motivos.
Comparando as gestões de Leite e Zema
Os governadores, cujas gestões em segundo mandato consecutivo são concomitantes nos dois importantes estados, buscaram mostrar os resultados de seu trabalho com números e gráficos.
A aparência imediata, na comparação dos dois, é que os resultados de Leite são melhores, ou ao menos mais chamativos. Apurei os números e resumi a comparação na tabela abaixo.
Tema | Eduardo Leite (RS, 2019–2025) | Romeu Zema (MG, 2019–2025) |
Segurança Pública | Queda expressiva nos homicídios (57%) e roubos (70-87%); programa RS Seguro com integração policial. | Queda de crimes violentos (~54%), leve alta de homicídios em 2024 (+4,6%); integração policial. |
Equilíbrio Fiscal | Reformas administrativas e privatizações; salários regularizados desde 2020; superávits orçamentários após 2021. | Reformas administrativas; salários regularizados desde 2020; adesão tardia ao Regime Fiscal; sem grandes superávits. |
Privatizações e Concessões | Privatizou cinco estatais (CEEE, Corsan, Sulgás); concessões de rodovias e parques (R$ 45 bi em investimentos privados previstos). | Sem privatizações concretizadas até 2025; concessões pontuais e projetos em preparação (Cemig, Copasa). |
Resposta a Desastres | Enchentes (2023/24): rápida ação emergencial, coordenação com governo federal, recursos imediatos para reconstrução. | Brumadinho (2019): resposta rápida, acordo histórico com Vale (R$ 37,7 bi), investimentos para vítimas e reconstrução. |
Polêmicas e Críticas | Restrições rigorosas e idiossincráticas na pandemia (fechamento de gôndolas), recuo na compra do jatinho, atritos com apoiadores de Bolsonaro. | Lockdown mais brando na pandemia, vetos salariais criticados por policiais. |
Fontes: Dados compilados a partir de GZH, Estadão, Folha de S.Paulo, Agência Minas, e O Globo.
A imprensa gaúcha tem reconhecido algumas das conquistas de Leite. O jornal Zero Hora, por exemplo, noticiou em janeiro que o estado alcançou pela segunda vez o ano menos violento de sua história, embora ainda tenha desafios de segurança. A redução do roubo de veículos e cargas, no período que inclui alguns anos antes da gestão, foi em torno de 90%.
Nas contas públicas, por exemplo, o governo Leite quitou completamente no ano passado uma dívida do “Caixa Único”, que em 2019 era de quase R$ 10 bilhões. O programa que causou o rombo consistia em recorrer a fundos e autarquias para pagar despesas correntes.

Nisso, assim como nas privatizações, a situação de Minas Gerais é mais complicada, com maior interferência do Governo Federal que, com Lula, resiste à agenda liberal. Leite privatizou mais, mas Zema reduziu a máquina mineira em 50 mil cargos, para o número mais enxuto de 14 secretarias, criticando seu antecessor, Fernando Pimentel (PT) por “só passear na capital de helicóptero” e viver “num palácio com 32 empregadas”. Zema também acusa a gestão petista em Minas de ter levado muitos prefeitos à renúncia, e em alguns casos até ao suicídio, com cortes irresponsáveis de verbas.

Por que Leite recebeu vaias?
Uma das explicações mais imediatas para as vaias é o fato de que, ao contrário de Zema, Leite não se alinha a Jair Bolsonaro.
O governador gaúcho não ignorou seus críticos: “Vaias não me intimidaram, não me intimidam e nunca me intimidarão”, ele disse.
Leite sugeriu que as vaias resultavam de uma postura política em que “coragem é confundida com agressividade, com destruir quem pensa diferente”. Fazendo possível referência a contatos anteriores com o governo Lula, ele disse que “diálogo não é fraqueza, é maturidade”.
“É um ato de coragem se deixar convencer pelo outro, se ele tem melhores argumentos”, concluiu. Sobre 2026, Leite disse a Zema que “se for contigo, tamo junto”, fazendo referência à possibilidade de o mineiro tentar a presidência.
Há no currículo do gestor gaúcho, contudo, motivos bem objetivos para as críticas. Um dos principais foi a peculiar decisão, em março de 2021, de enfrentar a pandemia de COVID-19 pelo fechamento seletivo de gôndolas de supermercados. “Venda exclusiva de produtos essenciais”, diziam cartazes da época afixados em barreiras de plástico circundando prateleiras inteiras de produtos.
Na época, Leite alegou que sua intenção era reduzir a circulação de pessoas nos supermercados. O fechamento seletivo de gôndolas foi uma decisão rara no mundo, só replicada em alguns locais do País de Gales. Até onde pude apurar, o governador jamais expressou remorso pela medida, que faz muito pouco sentido científico. No máximo, ele declarou de forma genérica em 2022 que “erros podem ter sido cometidos”.
Sobre decisões como esta, o ativista gaúcho Fabiano Rheinheimer disse, para o blog do jornalista Políbio Braga, que “ninguém na história do nosso estado cerceou tanto a liberdade do povo quanto o governador Eduardo Leite durante os dois anos principais da pandemia”. O jornalista tendeu a concordar, sugerindo que, se Leite falaria em um evento sobre liberdade, também deveria ser convidada “a ex-deputada comunista Manuela D’Ávila”.
Há um ano, o Rio Grande do Sul enfrentou uma tragédia, as piores inundações em quase um século. Para o governador, foi o “maior desastre do estado”. Para uma parcela importante dos gaúchos, Leite errou tanto na prevenção quanto na remediação. Muitos criticam seus comentários em 14 de maio de 2024 para a rádio BandNews.
“Quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao Estado, há um receio, pelo que nós já observamos em outras situações, sobre o impacto que isto terá no comércio local”, disse o gestor. No dia seguinte, Leite reconheceu o erro, pediu desculpas e disse que acabou “misturando” assuntos. Mas o estrago, ao menos na percepção de alguns, estava feito.
Um quarto motivo para descontentamento de alguns cidadãos do Rio Grande do Sul foram os planos de comprar uma aeronave oficial para o governador, este ano. Seria um jatinho que poderia custar R$ 90 milhões. Leite recuou, mas reclamou de “argumentos viciados e equivocados que foram trazidos na política e na imprensa”.
Nem todos os eleitores gaúchos estão preparados para perdoar Leite
Se o Fórum da Liberdade acontecesse em Belo Horizonte, Zema seria vaiado? Creio que não. Por vários motivos, do comportamento dos mineiros ao carisma do político. Leite é articulado, tem bons argumentos, bons resultados e dados a apresentar. Em carisma, contudo, é difícil competir com o mineiro descendente de imigrantes italianos, que vieram ao Brasil para substituir a mão de obra escrava na região de Ribeirão Preto.
Certamente, Zema tem erros que poderiam ser selecionados para manifestações do tipo, inclusive em uma plateia de viés mais liberal. Nesta era de redes sociais e excesso de informação, dificilmente dá para atribuir ao esquecimento o comportamento dos eleitores perante erros de seus representantes. Parte do que é chamado de amnésia do eleitorado é, na verdade, perdão. Se alguns gaúchos decidiram perdoar Leite, é compreensível. Mas testemunhei que há uma porção substancial que ainda não está preparada para direcionar a seu governador essa virtude cristã.