Por Leonardo Corrêa*
A recente ação judicial movida pelas empresas Rumble e Trump Media & Technology Group (TMTG) nos Estados Unidos, contra o Ministro Alexandre de Moraes, tem potencial para se tornar um dos maiores embates internacionais sobre censura e liberdade de expressão. O processo busca impedir que o Ministro continue impondo ordens de bloqueio contra usuários e conteúdos em plataformas americanas, em uma clara tentativa de estender sua jurisdição além das fronteiras do Brasil. Segundo as empresas, essas ordens violam a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que garante a liberdade de expressão, e não podem ser aplicadas no território americano.
A petição apresenta uma série de acusações contra Moraes, alegando que ele lidera uma campanha sistemática de censura contra opositores políticos, utilizando decisões sigilosas e ameaças de multas para obrigar empresas de tecnologia a removerem conteúdos e banirem usuários. O documento menciona que Moraes já determinou a suspensão de mais de 150 contas de jornalistas, políticos e cidadãos críticos ao governo brasileiro. Além disso, afirma que ele ignorou os procedimentos internacionais adequados, como o Tratado de Assistência Jurídica Mútua (MLAT) e a Convenção da Haia, que regulam pedidos judiciais entre países. Em vez de seguir esses canais legais, o Ministro teria optado por enviar ordens diretas às plataformas americanas, tentando evitar qualquer tipo de escrutínio por parte do sistema judiciário dos EUA.
Com base nessas acusações, a Rumble e a TMTG pedem que a justiça americana reconheça as ordens de Moraes como ilegais e inaplicáveis nos Estados Unidos, garantindo que nenhuma empresa de tecnologia seja obrigada a cumpri-las. Além disso, solicitam que Apple e Google sejam impedidas de remover o aplicativo da Rumble de suas lojas em resposta às determinações do STF. Se essas medidas forem concedidas, Moraes perderia ao menos parte de sua capacidade de influenciar as políticas de moderação de conteúdo das plataformas americanas.
Um fator que pode influenciar o desdobramento do caso é a solicitação feita pelas empresas para que a disputa seja julgada por um júri popular (jury trial). Isso significa que, se o processo avançar, a decisão sobre a legalidade das ordens de Moraes não será tomada apenas por um juiz, mas também por um painel de jurados, que avaliará os impactos das medidas sobre a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Esse tipo de julgamento pode ser particularmente desfavorável a Moraes, pois jurados americanos tendem a ser muito protetores da Primeira Emenda e podem interpretar a tentativa de censura de um juiz estrangeiro como uma ameaça direta à liberdade individual e empresarial nos EUA.
Além disso, o perfil da corte que julgará o caso pode ter um impacto significativo no desfecho do processo. Como a ação foi movida na Corte Federal do Distrito da Flórida, qualquer recurso será analisado pelo 11º Circuito da Corte de Apelações dos Estados Unidos, cuja composição atual tem uma inclinação majoritariamente conservadora, com 6 juízes indicados pelo Presidente Donald Trump, em seu primeiro mandato. Esse fator pode ser favorável à Rumble e à TMTG, já que tribunais com essa orientação tendem a adotar uma interpretação mais rigorosa da Primeira Emenda, rejeitando tentativas de restrição à liberdade de expressão, especialmente quando envolvem a intervenção de governos. Além disso, o 11º Circuito possui um histórico de decisões que contestam a expansão do poder judicial e a interferência estatal em empresas privadas, o que pode reforçar a argumentação das plataformas contra as determinações de Moraes.
Outro ponto central na disputa judicial é a imunidade soberana, que normalmente protege autoridades estrangeiras de processos nos Estados Unidos. No entanto, a ação argumenta que Moraes não pode invocar essa proteção, pois teria extrapolado suas funções ao tentar impor censura em um país onde a liberdade de expressão é um direito fundamental. O processo se baseia em exceções reconhecidas pela justiça americana, que retiram a imunidade de autoridades estrangeiras quando suas ações ultrapassam os limites legais de sua jurisdição ou quando resultam em violação de direitos fundamentais. Além disso, as empresas argumentam que suas operações foram diretamente afetadas, configurando uma interferência indevida nos negócios de empresas americanas.
O impacto dessa ação pode ir muito além do setor de tecnologia. Se a justiça dos EUA decidir a favor das empresas e contra Moraes, a questão poderá se tornar um problema diplomático entre Brasil e Estados Unidos. O governo americano pode emitir uma declaração oficial condenando a censura imposta pelo Ministro, aumentando a pressão sobre o STF e sobre o governo brasileiro. Além disso, parlamentares dos EUA podem propor sanções contra Moraes, que poderiam incluir bloqueio de bens no exterior e restrição de entrada nos Estados Unidos – isso já ocorreu com juízes venezuelanos (Caryslia Beatriz Rodríguez Rodríguez, Fanny Beatriz Márquez Cordero, Inocencio Antonio Figueroa Arizaleta, Malaquías Gil Rodríguez e Juan Carlos Hidalgo Pandares). Em um cenário mais extremo, os EUA poderiam até mesmo adotar medidas econômicas contra o Brasil, prejudicando acordos comerciais ou impondo dificuldades para empresas brasileiras que operam em solo americano.
Caso Moraes reaja à decisão da justiça americana ordenando que a Anatel bloqueie o acesso à Rumble no Brasil, os desdobramentos seriam ainda mais graves. No curto prazo, essa medida impediria que os brasileiros acessassem a plataforma. No entanto, no cenário internacional, seria interpretada como um ato de retaliação autoritária, reforçando a tese de que o Ministro está conduzindo um esforço deliberado para restringir o acesso à informação. O Congresso americano poderia reagir de forma ainda mais dura, ampliando as sanções contra Moraes e até mesmo contra instituições brasileiras que endossassem essa censura.
A situação se torna ainda mais delicada porque Moraes já demonstrou disposição para punir não apenas as plataformas digitais, mas também os próprios usuários. Quando ordenou o bloqueio do X (antigo Twitter) no Brasil, impôs multas de R$ 50.000,00 para quem tentasse acessar a rede social via VPN, uma prática comum para driblar bloqueios na internet. Se ele repetir essa abordagem no caso da Rumble, após eventual decisão da justiça americana, o problema deixaria de ser apenas um ataque às empresas de tecnologia e passaria a ser uma perseguição direta a cidadãos brasileiros, o que atrairia ainda mais atenção de organizações internacionais de direitos humanos. Isso poderia levar o Brasil a ser citado em relatórios da ONU sobre repressão digital, prejudicando sua reputação global e tornando o país menos atrativo para investimentos estrangeiros.
O impacto econômico também não pode ser ignorado. Se o Brasil continuar escalando esse conflito, empresas estrangeiras podem reduzir ou encerrar suas operações no país, com receio de que decisões arbitrárias prejudiquem seus negócios. Esse tipo de incerteza jurídica já afastou empresas de tecnologia de mercados onde governos impõem restrições excessivas ao setor digital. Além disso, se o governo dos EUA decidir endurecer sua postura, pode adotar medidas que dificultem transações financeiras entre Brasil e Estados Unidos, impactando diretamente bancos e empresas que dependem do sistema financeiro americano.
Essa disputa não se resume a um simples processo judicial. O que está em jogo é a definição dos limites da censura estatal e da soberania digital, com implicações que podem ultrapassar a relação entre Brasil e Estados Unidos. A petição cita, inclusive, um discurso recente do vice-presidente americano JD Vance, feito na Conferência de Segurança de Munique, onde ele declarou que “não se ganha um mandato democrático censurando opositores ou os colocando na prisão”, em uma clara crítica às práticas de controle da informação por parte de governos autoritários. Esse posicionamento demonstra que os Estados Unidos não veem essa questão como um problema interno do Brasil, mas como um desafio global à liberdade de expressão.
O desenrolar desse caso pode criar um precedente internacional que dificultará futuras tentativas de censura transnacional, não apenas por parte do Ministro Moraes, mas de qualquer governo que tente impor suas regras sobre a internet além de suas próprias fronteiras. Se, por outro lado, o STF insistir em desafiar a decisão americana e dobrar a aposta no controle sobre as plataformas digitais, pode acabar enfrentando resistência não apenas nos tribunais dos EUA, mas também no cenário diplomático, no setor empresarial e na opinião pública internacional. Esse é um embate que pode redefinir os parâmetros da liberdade de expressão no ambiente digital e estabelecer novos limites para o poder das cortes nacionais sobre a internet.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum