A recente divergência entre o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, revela não apenas uma diferença de opiniões sobre a eventual anistia aos réus do 8 de janeiro, mas expõe a assimetria estrutural entre dois poderes que deveriam se limitar mutuamente. Enquanto Motta defende, com pragmatismo político e senso de proporcionalidade, a reavaliação de penas que considera excessivas — sobretudo em casos em que não houve financiamento, liderança ou violência —, Gilmar rechaça qualquer tentativa de anistia como “capricho político”, sugerindo que apenas os tribunais podem decidir o destino dos envolvidos.
A crítica de Gilmar, no entanto, ultrapassa os limites institucionais da magistratura e revela certo descompasso com o momento delicado da democracia republicana brasileira: de um lado, representantes eleitos buscando restabelecer a racionalidade punitiva; de outro, um juiz da mais alta Corte tentando frear, por meio de juízo de valor público, um movimento legítimo do Legislativo.
Por trás dessa tensão institucional, encontra-se uma questão ainda mais profunda: o fundamento do poder e os limites do Estado no arcabouço da Constituição de 1988. Longe de ser uma concessão da maioria ou uma outorga graciosa do governo, nossa Constituição se insere na tradição dos direitos naturais — aqueles que precedem o Estado e pertencem a cada indivíduo em sua condição de pessoa. Nessa tradição, não é a vontade coletiva que cria os direitos, mas são os direitos que limitam qualquer vontade, inclusive a da maioria.
A soberania, portanto, não reside em uma massa indistinta, mas em cada um de nós, individualmente considerados. O artigo 5º enumera direitos invioláveis como a vida, a liberdade e a propriedade, e o artigo 60, § 4º, IV, protege esses direitos com o manto das cláusulas pétreas, blindando-os até mesmo contra a ação do legislador reformador. No modelo republicano, que busca frear os riscos de facção denunciados por Madison, o Estado existe para garantir esses direitos, não para mediá-los conforme conveniências políticas. É esse princípio que sustenta o devido processo legal como um verdadeiro limite ao poder, uma garantia contra abusos institucionalizados e uma salvaguarda da liberdade de cada cidadão.
Foi precisamente esse limite republicano — a exigência de provas individualizadas, a presunção de inocência e a racionalidade do processo penal — que norteou o voto vencido do Ministro Luiz Fux no julgamento de Débora Rodrigues dos Santos, acusada de participar dos atos de 8 de janeiro. Em dissenso respeitoso, mas firme, Fux rejeitou a lógica da culpabilidade difusa e da imputação genérica, lembrando que a condenação penal só é legítima quando fundada em provas claras, colhidas sob contraditório e capazes de demonstrar o dolo específico da conduta imputada. No caso, não havia qualquer evidência de que a ré tivesse participado de associação criminosa, promovido golpe de Estado ou incorrido em violência. A única conduta comprovada foi a pichação da escultura da Justiça com batom — um ato simbólico, tosco e repreensível, mas infinitamente distante do que se tentou caracterizar como atentado à ordem constitucional.
Ao reafirmar que a ausência de provas impede a condenação, mesmo diante da comoção institucional, Fux não apenas aplicou o princípio do in dubio pro reo, mas resgatou a essência do processo penal republicano: punir com base na verdade processual, não em narrativas edificadas por necessidade de exemplaridade ou pressão política.
É nesse ponto que a crise institucional se aprofunda: decisões judiciais, mesmo tecnicamente válidas e formalmente fundamentadas, deixam de cumprir sua função pacificadora quando não são percebidas como legítimas pela sociedade. A legitimidade, nesse contexto, não exige concordância universal nem submissão cega — exige, antes, a convicção de que o processo foi imparcial, que os fatos foram apurados com rigor e que os direitos individuais foram respeitados. A Corte Constitucional, para manter sua autoridade moral, precisa inspirar confiança não apenas entre os juristas, mas sobretudo entre os cidadãos comuns, que nela veem o último reduto contra o arbítrio.
Quando essa confiança se desfaz, quando os réus são tratados como símbolos a serem punidos exemplarmente e não como pessoas com direitos individuais assegurados, a própria estrutura do Estado de Direito começa a ruir. Gilmar Mendes parece ignorar esse dado elementar ao desqualificar o debate público como capricho ou ao sugerir que apenas os tribunais podem decidir o que é admissível em termos de clemência estatal. A democracia republicana, porém, não se sustenta sobre o monopólio de uma instituição, mas sobre o equilíbrio e a contenção recíproca entre os Poderes.
Na república delineada pela Constituição de 1988, não há soberano acima do indivíduo. A ideia de que o povo delega parte de seus direitos ao Estado não autoriza os agentes públicos a extrapolarem os limites dessa delegação. Pelo contrário: são esses limites que conferem legitimidade ao exercício do poder. Quando juízes abandonam a função de intérpretes do texto para assumir o papel de protagonistas políticos, e quando decisões judiciais se tornam imposições distantes da realidade e do sentimento constitucional da sociedade, perde-se o vínculo entre o poder e o consentimento. E sem esse vínculo, não há autoridade — apenas força revestida de formalidade.
O que está em jogo hoje não é apenas a revisão de penas ou a pertinência de uma anistia. Está em jogo a restauração da confiança nos pilares do constitucionalismo republicano: a limitação do poder, o respeito ao devido processo e a soberania do indivíduo. Se a Corte deseja continuar sendo a guardiã da Constituição, deve primeiro lembrar-se de que ela não está acima dela.
*Leonardo Corrêa — Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum.