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Processos que começam mal, dificilmente terminam bem

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Por Rodrigo Chemim*

Acabei de ler a decisão do ministro Alexandre de Moraes que impõe medidas cautelares ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Antes de comentar tecnicamente o conteúdo específico desta decisão, considero necessário fazer uma ressalva de natureza mais ampla: venho sustentando, desde 2019, que há sérios problemas jurídicos na condução dos inquéritos e processos criminais instaurados no âmbito do STF. Tais problemas envolvem, entre outros aspectos, vícios de competência, tipificações penais inadequadas, desconsideração do conflito aparente de normas, violação das garantias de imparcialidade dos julgadores, indevida atividade investigativa pelo Poder Judiciário e a sistemática erosão de diversas outras garantias processuais penais fundamentais ao Estado Democrático de Direito.

No caso do processo principal contra Jair Bolsonaro (atualmente em fase de alegações finais), já escrevi longamente, em outros artigos, que apenas a imputação relacionada à participação em organização criminosa possui, em tese, base técnico-jurídica. As demais imputações, a meu ver, carecem de suporte normativo adequado à luz do que a investigação e a instrução probatória revelaram.

Feita essa observação, como professor de processo penal, compartilho uma análise estritamente técnica, voltada a contribuir para o debate jurídico qualificado, sem qualquer conotação política ou ideológica.

Em linhas gerais, a decisão do ministro Alexandre de Moraes busca conter condutas que, segundo a investigação, teriam como finalidade pressionar ou constranger o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Penal 2668, em que Bolsonaro figura como réu.

Nesse ponto, é possível identificar relação com ao menos dois tipos penais: o crime de coação no curso do processo (art. 344 do Código Penal) e, a depender da comprovação do elemento subjetivo, o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L). Caso reste demonstrado que uma única conduta visou tanto à intimidação do Judiciário quanto à corrosão institucional mais ampla, pode-se cogitar, inclusive, a existência de concurso formal de crimes, com base no art. 70 do Código Penal.

Há, no entanto, uma fragilidade argumentativa na decisão. O ministro afirma que Jair Bolsonaro teria “confessado” atuação dolosa ao condicionar o fim das sanções à sua anistia. Entretanto, a transcrição da fala de Jair Bolsonaro que daria suporte a essa conclusão é, no mínimo, ambígua, com conjecturas (“Vamos supor que…”). Não há confissão, mas sim uma hipótese retórica. A qualificação como “confissão consciente e voluntária” é exagerada e destituída de rigor técnico. De resto, parece claro que Eduardo está nos Estados Unidos com a intenção de instigar o presidente daquele país a interferir na questão interna brasileira.

Por outro lado, a decisão também menciona o crime de obstrução de investigação de organização criminosa (art. 2º, §1º, da Lei 12.850/13), mas essa imputação apresenta fragilidades técnicas intransponíveis: o tipo exige interferência em “investigação”, e não em “processo penal já instaurado”. A tentativa de enquadramento da conduta nessa figura é forçada, especialmente por carecer de vínculo direto com alguma apuração ainda em curso (há uma frágil referência ao hoje já “velho” inquérito das fake news, mas nada de concreto é indicado na decisão).

De resto, o princípio da legalidade estrita que orienta o direito penal democrático não se admite interpretação extensiva “in malam partem”.

A imputação por atentado à soberania nacional (art. 359-I do Código Penal) também não resiste à boa técnica. O tipo exige a existência de negociação com governo estrangeiro com o objetivo de que este pratique “atos de guerra” contra o Brasil e não “atos hostis”, como a decisão invoca. Atos de guerra não se confundem com as medidas diplomáticas desfavoráveis ou mesmo com sanções econômicas anunciadas, ainda que, no contexto presente, elas possam ser questionadas no plano internacional à luz do artigo 2.7 da Carta da ONU.

Quanto às medidas cautelares impostas, a maioria está formalmente prevista no art. 319 do Código de Processo Penal e, em tese, justificada com base no art. 282, I, do mesmo diploma, que exige a demonstração de necessidade para a aplicação da lei penal. Como se trata de acusação de coação no curso do processo, o fundamento é juridicamente válido: impedir que o réu, valendo-se de sua visibilidade e articulações, comprometa a regularidade do julgamento.

Nesse contexto, medidas como o uso de tornozeleira eletrônica (art. 319, IX, CPP), recolhimento domiciliar noturno (art. 319, V, CPP), proibição de contato com autoridades e investigados (art. 319, III, CPP), bem como o impedimento de aproximação ou ingresso em embaixadas (art. 319, II, CPP), guardam proporcionalidade e respaldo legal. Todavia, a decisão impõe também uma medida atípica: a proibição do uso de redes sociais.

REDES SOCIAIS

Essa restrição, embora venha sendo adotada pelo ministro Alexandre em inúmeros casos, não encontra previsão legal expressa e se apoia no chamado poder geral de cautela do juiz. Trata-se de uma construção jurisprudencial hoje majoritária no STF, mas que desperta críticas legítimas: a legalidade estrita é princípio estruturante do processo penal, e admitir medidas não previstas em lei, ainda que por boas razões, pode abrir margem para decisões arbitrárias.

Quem aplaude, aplaude a possibilidade de um juiz resolver inventar medidas cautelares contra os cidadãos. Como não há limites à criatividade humana e ser humano com poder, sem controle, tende a abusar (já dizia o velho Montesquieu no “O Espírito das Leis”), isso é péssimo para a democracia.

A decisão também menciona risco de fuga como fundamento para as medidas, mas não indica elementos concretos que demonstrem isso (passagens compradas, movimentações suspeitas, planos de viagem etc.). A generalidade desse argumento enfraquece a fundamentação da medida.

O repasse de R$ 2 milhões do pai ao filho, além de atípico, não é, por si só, indicativo de participação em crime. Ausente prova de que os recursos foram utilizados para corromper autoridades estrangeiras ou financiar atos ilícitos, a inferência de dolo se mostra insuficientemente sustentada.

Outro ponto que merece atenção é a seletividade da decisão. Embora ela descreva de forma detalhada a atuação de Eduardo Bolsonaro, que estaria inclusive fora do país e envolvido diretamente nas articulações internacionais, nenhuma medida cautelar foi imposta contra ele. Ainda que ele seja deputado federal, está licenciado do cargo e, assim, os crimes, em tese, cometidos, não podem ser considerados em razão da função, autorizando a adoção de medidas cautelares em tese vedadas a deputados federais.

O fato de ele estar fora do país não impede a adoção de medidas no plano interno. Essa omissão de providências contra Eduardo enfraquece a coerência da decisão e lança dúvidas sobre o critério de proporcionalidade adotado. Se a finalidade das medidas é proteger a integridade do processo penal, não há justificativa plausível para a assimetria entre os dois agentes indicados como protagonistas dos mesmos atos.

Do ponto de vista processual, é importante ressaltar que a decisão foi tomada ainda na fase de inquérito, e, por isso, não exige prévia oitiva da defesa. O contraditório, nesses casos, é diferido: pode ser exercido após a imposição da medida, desde que a decisão seja devidamente fundamentada e tenha respaldo do Ministério Público, como foi o caso.

A busca e apreensão foi autorizada com base no art. 240 do CPP, com indicação da finalidade: recolher elementos que comprovem vínculo entre Jair e Eduardo Bolsonaro nas tratativas com governo estrangeiro. A decisão preenche os requisitos da proporcionalidade e da reserva de jurisdição.

Em síntese: a decisão acerta ao reconhecer o risco de coação e ao aplicar cautelares diversas da prisão que, em geral, se mostram proporcionais e legalmente previstas. No entanto, incorre em excesso na tentativa de subsunção penal de condutas que não se ajustam aos tipos legais indicados, impõe medida cautelar atípica sem previsão legal clara e não adota providências contra outro agente igualmente mencionado como protagonista dos fatos.

Em um Estado de Direito, a defesa das instituições é fundamental, mas ela só é legítima quando conduzida com rigor técnico, respeito aos limites normativos e estrita observância às garantias do processo penal. Quando se parte de premissas frágeis ou ilegítimas, ainda que com fins supostamente nobres, o risco é inverter a lógica do sistema: em vez de proteger a democracia, comprometê-la. De resto, como ensina a experiência jurídica, processos que começam mal, dificilmente terminam bem. E quando o Direito perde sua forma, a democracia perde seu rumo. O que virá a seguir ainda é uma incógnita. O horizonte institucional do país inspira mais incertezas do que convicções. E isso deveria nos preocupar a todos. A ver.

* Rodrigo Chemim – Professor de Processo Penal no Mestrado em Direito na Universidade Positivo e na graduação no Unicuritiba. Doutor em Direito do Estado. Procurador de Justiça.

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