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MPF quer fazer com prefeito de Porto Alegre o que fizeram com Monark

O cidadão de uma democracia deve ter liberdade para expressar ceticismo contra a democracia? A resposta de quem pensa no assunto é sim, desde os tempos em que o político democrata Demóstenes (384-322 a.C.) discursava em Atenas.

Demóstenes “notava com orgulho que os atenienses tinham permissão para criticar sua própria constituição e elogiar a espartana, enquanto os espartanos só podiam elogiar sua própria”, como resumiu o pensador dinamarquês Jacob Mchangama em seu livro de história da liberdade de expressão (Free Speech: A History from Socrates to Social Media; Basic Books, 2022).

“A capacidade de criticar livremente seu próprio sistema político ainda é uma prova de fogo para as democracias do passado e do presente”, completou Mchangama.

Mas o douto Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul discorda: abriu uma investigação contra Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre (do MDB), não exatamente por ele denunciar a democracia, pois isso ele não fez, mas por ele expressar a mesma opinião de Demóstenes e Mchangama: que as pessoas são livres para duvidar da democracia e valorizar Esparta acima de Atenas.

Disse Melo, na cerimônia de posse dos vereadores da capital gaúcha: “Para mim, forjado na luta popular, forjado na luta democrática e advocatícia, a liberdade de expressão é o que há de mais caro na vida de um país. Um parlamentar que diga ‘eu defendo a ditadura’ não pode ser processado por isso, porque isso é liberdade de expressão. Mas eu também quero que aquele que defenda o comunismo, o socialismo, dizendo que não acredita na democracia liberal não possa ser processado, porque isso é liberdade de expressão.”

É importante reproduzir o trecho de discurso do político na íntegra porque ele está sendo propositalmente mutilado na imprensa e, possivelmente, também pelo MPF.

Segundo a CNN, o MPF já abriu um “procedimento interno” para “apurar se houve violação à ordem democrática”. O veículo informou também que “não se descarta uma apuração também na seara criminal”. Que crime?

A primeira coisa que salta aos olhos, aí, é que algum procurador pense que há o que “apurar” ou investigar em uma fala pública cujos elementos são todos conspícuos, disponíveis a qualquer um para ouvir, não havendo nada o que apurar. Isso faz parte do abuso que a noção de “investigação” ou “inquérito” vem sofrendo no Brasil: cada vez mais, o termo está rotulando procedimentos a portas fechadas que servem para intimidação, não para descobrir verdades inconspícuas, como seria de se esperar.

Roma vs. Atenas

Quem quer intimidar quem? Deixemos de lado termos de rotulação política por um momento e tentemos chegar às ideias. Há dois modelos de liberdade de expressão em conflito hoje, como explica Mchangama. Um é o modelo americano, que é o mesmo ateniense de Demóstenes, pois permite criticar o próprio sistema de liberdade que dá espaço para a expressão da crítica. (Quem entra em contradição não é a sociedade livre, mas quem faz a crítica.) O outro modelo é o praticado pela União Europeia, que é mais associado ao Império Romano e permitia a expressão somente para as classes dominantes, negando-a aos supostos inferiores.

Esses “romanos” modernos, que estão mais para bárbaros da censura, usam de táticas de intimidação contra os herdeiros da liberdade genuína de Atenas. Hoje, a visão europeia-romana é a dominante na imprensa tradicional, nas universidades e em instituições como o Supremo Tribunal Federal e o MPF. Mas essa dominância foi ameaçada pelo ambiente democrático das redes sociais, em que indivíduos considerados moralmente inferiores por essa aristocracia global insistem em ter liberdade de expressar o que ela acha repugnante.

A reação dos “romanos” começou já durante o discurso do prefeito Sebastião Melo: quando ele terminou a frase sobre o parlamentar hipotético fã da ditadura (e no contexto está claro que ele está se referindo à Ditadura Militar de 1964-1985), uma parte substancial da plateia vaiou. Vaia por si só não é censura, mas discordar da visão de Demóstenes é aderir à censura, em última análise. Quando Melo complementou que a liberdade de expressão também se aplica ao comunismo, não ouvi nenhuma vaia.

As reportagens com mal disfarçado apoio ao MPF pegaram somente a primeira parte da fala do político, e ocultaram o final. Porque a aristocracia que quer calar bocas se interessa mais em calar quem tenha simpatias pelo antigo regime militar do que quem elogia assassinos como Lênin, Stálin ou Maduro — algo comum na política brasileira, em que cinco partidos assumidamente comunistas são reconhecidos e ganham dinheiro de impostos.

Claro, o MPF não faz nada sozinho: ele foi provocado por ONGs como a Associação dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Rio Grande do Sul e o Movimento de Justiça e Direitos Humanos.

O procurador regional Enrico Freitas, ao abrir o procedimento contra o prefeito, disse que a liberdade de expressão “não pode ser usada para defender um regime que prega justamente o fim da liberdade de expressão”. Pode sim, procurador. E este argumento é feito pelos fundadores da democracia na Grécia antiga, como Demóstenes. Se tem argumentos melhores que os dele ou de seus herdeiros intelectuais, como John Milton e John Stuart Mill, apresente-os não só no MPF, mas também em periódico acadêmico de filosofia. Vamos examinar se as crenças do consórcio dos “romanos” têm pernas longas.

Mas o procurador está errado, repito, ao alegar que foi isso que o prefeito fez: defender o regime. Ele não o fez hora nenhuma. Ele disse que há liberdade para defender e discordará de quem defender, mas reconhece que existe esse direito.

O entendimento equivocado segundo o qual “defender liberdade para x” é igual a “defender x” também foi usado abundantemente contra o podcaster brasileiro Bruno “Monark” Aiub, um dos exilados do novo regime de exceção que governa o país numa parceria profana Executivo-Judiciário.

Joga pedra na Geni

Em 7 de fevereiro de 2022, no episódio 251 do Flow Podcast, Monark, na companhia dos deputados federais Tabata Amaral (PSB-SP) e Kim Kataguiri (então DEM-SP), apresentou o simples argumento de que a liberdade de expressão é para todos e nazistas estão inclusos em “todos”. Com seu linguajar atabalhoado, ele afirmou que o grupo ideológico intolerante também tem liberdade de reunião e associação pacífica: “Eu acho que a gente tinha que ter um partido nazista reconhecido pela lei”. Estava feito o “convite” ao consórcio “romano” para interpretar da pior forma possível — o que eu chamo de sadismo interpretativo, uma tática intelectualmente desonesta.

O único verdadeiro elemento de descuido na fala de Monark é que ele ignorou que, no Brasil, partidos oficialmente constituídos têm acesso ao bolso do pagador de impostos, e não seria correto que nazistas fizessem parte da mamata — não parece correto que nenhum partido tenha esse poder, aliás.

No dia seguinte, Monark, um cofundador do podcast, foi expulso do programa que fundou. Dois dias depois da fala, o Ministério Público Federal instaurou procedimento investigatório contra Monark, interpretando sadicamente que ele teria feito “apologia ao nazismo”, também estimulado pelo burburinho dos outros “romanos” na imprensa.

Também naquela ocasião ONGs atuaram para silenciar o comunicador. Até chamaram contra ele a Polícia Civil de São Paulo, alegando que Monark teria violado a Lei nº 7.716/1989, a lei do racismo que o STF tem usado para expandir a censura pela via do ativismo judicial.

Para resumir a situação, a aristocracia “romana-europeia” tupiniquim colocou todo seu aparato midiático e estatal contra um único indivíduo, que logo caiu na malha fina dos inquéritos secretos intermináveis do ministro Alexandre de Moraes. Depois, ele foi condenado a um ano e meio de prisão por ter chamado o ministro Flávio Dino (outra autoridade que promove a censura no Brasil, chegando a mandar destruir livros) de “gordola”. Felizmente, o podcaster se exilou nos Estados Unidos no momento crítico. Atenas acolheu mais um forasteiro.

Como apontaram parlamentares americanos que examinaram as ordens secretas de Moraes enviadas ao X, denunciadas por Elon Musk, Moraes quis censurar Monark até por reclamar da censura.

Observemos os próximos passos dos “romanos” contra Sebastião Melo. Agora o alvo é mais graúdo, mais articulado. A chama de Atenas, que sempre tremeluziu fraca no Brasil, vai ser extinta novamente?

(Crédito da Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil. Sebastião Melo, de máscara, na companhia de Jair Bolsonaro em 2021.)

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Eli Vieira

Eli Vieira

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