Por Eli Vieira
A organização americana FIRE (Foundation for Individual Rights and Expression) é hoje um dos nomes mais importantes do mundo na defesa da liberdade de expressão e combate à censura.
No ano passado, um estudo da revista PNAS que usou dados da FIRE analisou 23 anos de campanhas de intimidação e censura contra professores universitários, conhecidas como “cancelamentos”, e concluiu que o progressismo identitário é hoje uma das forças mais danosas à liberdade de cátedra e à pesquisa científica. Quase 500 professores sofreram sanções, incluindo a demissão. No mesmo ano, a FIRE, que faz rankings do ambiente de expressão em universidades, deu nota zero para Harvard.
Agora, a organização publicou um novo relatório com base em entrevista de 6.269 professores universitários em 55 universidades dos Estados Unidos que confirma uma desconfiança expressada em um livro de seu presidente: o cancelamento já é pior que o macartismo — o período de perseguição a acusados de comunismo entre 1950 e 1954 que leva o nome do senador americano Joseph McCarthy, incitador da paranoia.
Cancelamentos são quatro vezes piores que o macartismo
Durante a era McCarthy, 9% dos professores universitários expressavam que baixaram o tom em seus textos por medo de controvérsia. Agora, são 35%, quase quatro vezes mais.
Uma grande parte do corpo docente americano (40%) teme sofrer assassinatos de reputação por má interpretação do que disseram ou fizeram, e 23% temem perder seu emprego pelo mesmo motivo.
O medo tem base na realidade: 14% dos professores de fato foram disciplinados por seus superiores, ou sofreram ameaças de punição pelo que expressaram ao ensinar, pesquisar, dar seminários ou por algo que disseram fora do campus.
De onde vem a intimidação que causa a autocensura? Da expectativa de reação de seus alunos, administradores ou colegas, disseram 27% em entrevistas com a FIRE.
Como a pureza ideológica é mantida nas universidades americanas
Há cinco anos, um amigo da área da física que estava procurando emprego em universidades americanas me mostrou que quase toda vaga, quando não era uma cota reservada para mulheres ou minorias, exigia que ele escrevesse uma “declaração de diversidade” como pré-requisito no processo seletivo.
Essa exigência nada mais é que um teste de pureza ideológica para manter a hegemonia progressista e de “esquerda” no mundo acadêmico. Basta ver a definição dada por Harvard: o que é uma “declaração de diversidade” (diversity statement)? “É uma declaração narrativa caprichada, tipicamente com uma a duas páginas, que descreve os seus sucessos, metas e processo de avançar a excelência em diversidade, inclusão, equidade e pertencimento como um professor e um pesquisador na educação superior”.
Este vocabulário é claramente ideológico. “Equidade”, por exemplo, passou a ser tratada como sinônimo de igualdade de resultados, uma mal mascarada esperança comunista, e afastada da igualdade de tratamento, um valor liberal clássico. Ninguém menos que Kamala Harris promoveu esse vocabulário e conceito em uma animação postada em sua conta no X em 1º de novembro de 2020, parte da campanha vitoriosa de sua chapa com Joe Biden para a presidência.
“Há uma grande diferença entre igualdade e equidade”, disse Harris. Ela favorece a equidade porque “significa que todos no fim ficamos no mesmo lugar” — o lugar mostrado pela animação é o pico de uma montanha.
Os resultados da pesquisa da FIRE mostram que a maré pode estar mudando. Metade dos professores universitários disseram que a exigência de declaração de diversidade raramente ou nunca é justificada. Dois terços exatos expressaram que as universidades deveriam evitar tomar posições sobre assuntos políticos e sociais, preferindo a postura de neutralidade. É um sinal de enfraquecimento do “woke” (progressismo identitário).
O alvo dos cancelamentos é muito claro
A FIRE mostrou que são os professores conservadores os que mais temem por suas carreiras e reputações. O número deles que esconde suas crenças políticas dos colegas é três vezes maior que a quantidade de progressistas que dizem que fazem a mesma autocensura (55% contra 17%). Enquanto 47% dos conservadores dizem que não podem expressar suas opiniões em certos assuntos por temerem a reação dos colegas, alunos e chefia, só 19% dos professores progressistas dizem o mesmo.
Absurdos 69% dos professores conservadores dizem que fazem autocensura nas redes sociais ou outros ambientes online. O número geral para todas as ideologias políticas é 56%. Depois da Internet, os ambientes em que mais fazem autocensura são a sala de aula (42%), seminários externos (41%), publicações acadêmicas (27%) e temas de pesquisa (20%).
Se um quinto dos pesquisadores diz que falsificam o que realmente pensam nos temas de pesquisa que escolhem, e mais de um quarto em seus artigos técnicos, isso significa que a universidade está se tornando um ambiente hostil para cientistas corajosos.
“As descobertas aqui indicam que as preocupações com a autocensura na academia não são exageradas”, conclui o relatório da FIRE. A experiência não é universal, mas “muitos professores temem danos às suas reputações ou perder seus empregos, e mais ainda hoje do que durante a era McCarthy”.
Um professor de uma instituição menor disse à FIRE que quase evitou preencher o formulário da pesquisa “por medo de perder meu emprego de alguma forma… esperei quase duas semanas antes de criar coragem para assumir o risco de preencher”.
O macartismo já ganhou muita atenção como um período de injusta perseguição a qualquer pessoa acusada de comunismo nos Estados Unidos, especialmente em posições culturais importantes como cargos de produtor em Hollywood e cátedras universitárias. Mas já se passaram quase 70 anos desde que esse período, inserido no chamado “Segundo Pânico Vermelho” por historiadores, se encerrou.
Enquanto as injustiças do macartismo são inegáveis, contudo, também é verdade que a paranoia e a incompetência de Joseph McCarthy foram o maior presente que os comunistas receberam nos Estados Unidos.
Encerro com as palavras do jornalista Steven T. Usdin, em seu livro Engineering Communism (Yale University Press, 2005):
“A noção de que a verdade deve ser torcida ou suprimida para servir a uma causa é repugnante e, na minha opinião, vergonhosa. (…) Tempo suficiente passou, espero, para que estudantes da história americana consigam sustentar duas noções em suas cabeças ao mesmo tempo: Joseph McCarthy foi um valentão demagogo que fez muito estrago ao seu país; [e] o Partido Comunista dos Estados Unidos era um subsidiário do Partido Comunista da União Soviética que fez e apoiou a espionagem.”
Que vencerá o medo e contará o estrago pior feito pelo identitarismo nas universidades nos últimos anos?